Em uma propriedade rural no coração do Cerrado, uma forma inovadora e criativa de produzir está redefinindo os conceitos de produção orgânica. Na Fazenda Malunga, referência nacional no setor, os cultivos não seguem apenas um modelo baseado nas premissas da sustentabilidade ambiental, produtiva, social e econômica — eles resultam de processos desenvolvidos em laboratórios vivos e salas de aula que se transformaram em um centro de inovação, formador de uma nova geração de agricultores e técnicos.
Em meio a um cenário dominado pela produção convencional de soja e milho, a Fazenda Malunga se destaca como um oásis de biodiversidade e sustentabilidade na região do DAP-DF (Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal). Há mais de três décadas, o empreendimento que iniciou como um estabelecimento de agricultura familiar vive transformações permanentes e hoje se consolida como referência na produção de alimentos orgânicos certificados, abastecendo supermercados no Distrito Federal, São Paulo e Goiás, além de manter lojas próprias em Brasília – incluindo um ponto estratégico na Ceasa.
Fundada pelo engenheiro florestal Joe Valle, a Malunga foi crescendo e sendo expandida com a chegada da companheira de toda uma vida, Clevane Ribeiro, agrônoma e também adepta da produção orgânica. Com as devidas roupagens da modernidade, a dupla lembra, em parte, os personagens do livro “O feijão e o sonho”, um romance de Orígenes Lessa publicado em 1938, que conta a história de um personagem sonhador e visionário e sua esposa que transformava os sonhos em realidade. Nesta balada, o visionário Joe busca as inovações em todos os momentos e lugares, que a criativa e determinada Clevane transforma em novos processos produtivos.
“Na Malunga, cultivamos alimentos, conhecimento e felicidade”
Com apenas 23 hectares, o casal iniciou uma trajetória de sucesso vendendo parte da produção em feiras da Associação de Agricultura Ecológica do DF e entregando cestas em domicílio. Ao longo do tempo, a instabilidade das vendas – afetada pelo clima, feriados e períodos de férias – levou o casal a repensar o modelo de negócios. “A renda era incerta, e estávamos planejando ter filhos.” Precisávamos de algo mais consistente”, relembra Clevane, responsável pela gestão administrativa e comercial da fazenda. Entre outros fatos, pode-se dizer que a virada aconteceu em 1998, quando a Malunga fechou seu primeiro contrato de fornecimento de produtos orgânicos para o supermercado Pão de Açúcar, marcando o início de uma expansão que surpreendeu até mesmo os gestores da rede de supermercados. “Nossas gôndolas esvaziavam-se muito mais rapidamente do que os produtos convencionais. Já havia um público, das feiras e das cestas, que conhecia nossa forma de produção e confiava na gente”, conta.
Joe Valle e Clevane RibeiroMariana e Luiza, filhas de Joe e Clevane.
Com o crescimento, a Malunga deixou as feiras e investiu no fornecimento de produtos para outros mercados em Brasília, mas sem deixar de lado as cestas, entregues em domicílio. Esse era o nosso contato direto com os consumidores, lembra Clevane, era o nosso termômetro. Na sequência, a dupla fez uma iniciativa ainda mais arrojada: criaram lojas próprias, começando por um espaço discreto na Asa Norte, do Plano Piloto, em Brasília. A estratégia deu certo: os clientes gostaram e adotaram o novo formato, que se tornou um sucesso. Com a inclusão de novos clientes, que possuíam necessidades alimentares especiais (alimentos livres de glúten, sem lactose, entre outras) e a demanda por uma maior variedade de produtos, a empresa decidiu incluir produtos de outros produtores orgânicos, como sucos, massas e açúcar. “O mundo está mudando, e nós buscamos evoluir e acompanhar essa mudança”, salienta Clevane.
Hoje, a Malunga possui quatro lojas e um atacado na Ceasa, oferecendo mais de 50 itens, entre hortaliças e frutas que são abastecidos pela produção própria e por produtos originados em vários estados brasileiros e, até mesmo, do exterior, como as maçãs argentinas. Possui uma linha de laticínios – que hoje é um dos carros-chefes da marca, com 17 produtos, entre leites, iogurtes e queijos.
Produção integrada: o segredo da sustentabilidade
A Fazenda, que hoje ocupa 110 hectares (parte deles arrendados de terras públicas, da Terracap), adota um modelo integrado entre agricultura e pecuária. O gado, que é um dos maiores xodós do Joe, garante uma produção de leite (2 mil litros/dia) e um farto material que é transformado em insumo por meio da compostagem.
Para aprimorar e enriquecer o composto, a Malunga, que foi o primeiro estabelecimento do DF a utilizar pó de rocha no seu processo de manejo (naquele tempo ainda não havia a lei dos remineralizadores) – ainda em 1998 – utiliza e incorpora os REM como base fundamental para abastecer e renovar os nutrientes minerais ao solo.
Na Fazenda Malunga, o processo de compostagem é um pilar central do manejo orgânico, conforme detalhado por Clevane. Ele se inicia com a aplicação de remineralizadores no piso do curral, seguidos por uma camada de serragem (maravalha). Essa “cama” recebe as excretas dos animais e é manejada diariamente, inclusive com o uso de ventiladores para otimizar a circulação de ar. Esse cuidado garante não só o conforto dos animais, mas também a temperatura ideal para a produção de material orgânico. Após aproximadamente 35 dias, todo o material é removido e transferido para leiras, onde a compostagem prossegue sob rigoroso controle. Esse controle é fundamental, pois impacta diretamente na qualidade nutricional do insumo que será utilizado na produção das hortaliças.
Treinamento dos trabalhadores da Malunga.
É crucial ressaltar que a Malunga possui toda a sua produção certificada como estabelecimento orgânico. Garantir a origem e o processo de produção dos insumos, portanto, assegura as condicionantes da certificação, além de representar um excelente negócio, pois reduz custos e garante a qualidade dos fertilizantes.
Fazenda-Laboratório: onde a Ciência Encontra o campo
Com 250 funcionários (2,27 trabalhadores por hectare, uma taxa alta para o setor), a Malunga virou sinônimo de qualidade e resistência. Apesar das dificuldades que aparecem cotidianamente, como formigas e plantas invasoras, como a tiririca, por exemplo, exigem soluções criativas (já que herbicidas convencionais estão fora de cogitação).
A família mantém a missão de “criar um paladar diferenciado” nos consumidores, ainda que isto signifique, no momento, preços mais altos. Mas, como lembra Clevane, “um produto orgânico carrega valores que vão além do preço: trabalho, cuidado ambiental e saúde”. E, após mais de 30 anos, uma das lições que ficou parece ser clara: persistência e inovação são as sementes que mantêm a Malunga florescendo.
Mas Joe Valle lembra que tanto os desafios como as conquistas converteram-se, ao longo do tempo, no segredo da transformação e da produtividade alcançada pela Malunga. Ele vai além e enfatiza que a produção repousa sobre três pilares fundamentais: (1º) os Remineralizadores, que nutrem o solo com novas fontes de minerais essenciais e benéficos; (2º) os Microrganismos, reproduzidos na Biofábrica que resulta em compostos, caldas e chás, usados para incrementar a nutrição e biota do solo; e (3º) as Plantas de cobertura, que enriquecem e protegem o solo das intempéries tão incertas em tempos de mudanças climáticas.
Apesar desse tripé funcionar muito bem, “eu posso garantir que o nosso mais verdadeiro insumo é o conhecimento”, relata Joe. “Nos últimos 30 anos, a Malunga serviu de campo de estudos. Dissertações e teses já foram elaboradas a partir da realidade e das formas de manejo que implantamos aqui. As pesquisas resultaram em um aprimoramento contínuo dos processos produtivos e na segurança nutritiva dos alimentos. “Tenho orgulho de dizer que a primeira tese de doutorado sobre o tema da rochagem foi produzida a partir de pesquisas desenvolvidas aqui na Malunga.” Nós aprendemos e ensinamos! Mas, para além disso, nós investimos em pesquisas próprias. Usamos tudo o que a ciência pode nos oferecer, desde análises metagenômicas para mapear microrganismos do solo via DNA, até formulações dos compostos da nossa biofábrica que produzem os insumos utilizados nas áreas de produção, complementando os remineralizadores e os blends de plantas de cobertura.
“O conhecimento tem a capacidade de abrir a mente do produtor e de expandir fronteiras, porque ao vermos na prática, sabemos para onde podemos ir”, afirmam os proprietários da Malunga. Esse entendimento permitiu que a propriedade tenha inaugurado uma abordagem inovadora no campo: “pesquisar-praticar”, que permite transformar a ciência em aliada das práticas agrícolas.
O Tripé de sustentação da Malunga
Remineralizadores: Pioneira no uso de pó de rochas desde 1998 Microrganismos: Biofábrica própria que produz 50 fórmulas de bioinsumos compartilhadas abertamente. Plantas de cobertura: “Blends” vegetais que protegem e nutrem o solo
Educação como missão
Nesse sentido e sempre buscando a inovação, a Malunga está se consolidando como um centro de treinamento e uma escola viva, onde a teoria é comprovada na prática cotidiana, em um laboratório a céu aberto, onde são testados constantemente novos compostos e manejos, inclusive a produção de novas variedades como, por exemplo, a cevada orgânica, que irá alimentar uma planta de cerveja artesanal.
Para além dos pilares que sustentam a produção orgânica da Malunga, outros fundamentos que a diferenciam da grande maioria dos empreendimentos agrícolas é a percepção de que um negócio, qualquer que seja ele, precisa estar ancorado em quatro forças: o conhecimento, o pertencimento, o reconhecimento e, por último, a renda. “Se eu não tiver os primeiros três, nenhuma grana vai me deixar feliz. Mas se eu tiver primeiro os três, qualquer grana me deixa feliz,” filosofa Joe. Investir nestes pressupostos é investir na felicidade coletiva.
Abertos a compartilhar tudo, absolutamente tudo, de suas descobertas, a Malunga parte do princípio de que ao dividir o conhecimento ele espraia para além dos limites da Fazenda e se adapta e se molda a novas realidades. Nós recebemos pessoas de diversas origens e lugares, que retornam à suas atividades com a inspiração para inovar e produzir. Neste sentido, a Fazenda se posiciona como um elo de conexão e colaboração em rede, sempre buscando novas parcerias e promovendo a difusão do conhecimento, onde quer que ele esteja; em uma propriedade rural, em uma universidade e/ou em centros de pesquisa. Nossa ambição e missão é acessar, dividir e repassar o conhecimento.
Com este entendimento, o sonho dos proprietários da Malunga é transformá-la em um grande centro de ensino, em uma “universidade”, onde os produtos carreguem conhecimento, reconhecimento, pertencimento e renda, transformando toda a cadeia de consumo. Inspirado em modelos como o do México, Joe vê no futuro não muito, distante a Universidade Agrícola da Malunga, que terá a missão de produzir alimentos orgânicos dentro dos pilares mencionados, mas, acima de tudo, treinará as pessoas para uma nova forma de interação da produção e da preservação dos recursos. Ainda neste futuro vislumbrado, Joe espera ver restaurantes e supermercados oferecendo produtos orgânicos com esses pressupostos.
Sonhar é importante, mas participar das mudanças também é vital. “Se pensarmos que nos últimos anos nós ajudamos a construir leis, normas e regulamentos nos orgânicos, na agroecologia, nos remineralizadores, nos bioinsumos, nós podemos transformar uma fazenda produtora de orgânicos em uma fazenda-escola e por que não em uma universidade”, sonha Joe. Esse sonho pode se converter em uma semente, ou mesmo em um farol que deixará um legado na produção de alimentos orgânicos e que trará, como componente adicional, a felicidade para todos que consumirem alimentos produzidos dentro dessa filosofia.
Quatro pilares: 1 – Conhecimento 2 – Pertencimento 3 – Reconhecimento 4 – Renda